sexta-feira, 30 de março de 2007

Brincar no Português


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de reproduzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Mia Couto
Pintura de Ilídio Candja

quarta-feira, 28 de março de 2007

Nocturnos



Vens de noite no sonho
sem pés
entre páginas
de gasta paciência
quando a música findou
e teu sorriso se desfez
como um grão de pólen.

Vens no veneno oculto
de meus dias
no silêncio
dos meus ossos
devagar
arrastando em queda
o nosso mundo.

Vens no espectro
da angústia
na escrita
inquieta
destes versos
no luto maternal
que me devolve a ti.

A escuridão desce então
sobre o meu corpo
quando o rosto da morte
adormece na almofada.


Ana Marques Gastão, Nocturnos, Lisboa, Gótica, 2002
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ANA MARQUES GASTÃO
Nasceu em Lisboa, em 1962. Advogada, formou-se na Universidade Católica e é actualmente redactora cultural e crítica literária do jornal Diário de Notícias. Como poeta, tem também representado o país em certames internacionais.

Alguns livros:

Tempo de Morrer,Tempo para Viver (1998)
Terra sem Mãe (2000)
A Definição da Noite (2003)
Nós / Nudos (2004)
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Pintura de Cézanne

segunda-feira, 19 de março de 2007

Carta


24 - 9 - 1929

Ex.ma Senhora D. Ofélia Queirós:

Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª - considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer cousa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obedência e da disciplina) - que V. Ex.ª está proibida de:

(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.

Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que caso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.

Cumprimenta V. Ex.ª

Álvaro de Campos, Eng. naval

Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas

Pintura de Henri Matisse, Femme assise à sa coiffeuse

quarta-feira, 14 de março de 2007

Carta de amor


9 - 10 - 1929
Terrível bebé:

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também por que é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e por que é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim.

Fernando

Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas

Pintura de Gustave Klimt, O beijo

terça-feira, 6 de março de 2007

O meu filho não gosta de ler


O meu filho não gosta de ler

Entretanto, no liceu (como dizem em itálico as histórias de banda desenhada belgas da sua geração), os pais:

- Sabe, o meu filho... a minha filha... os livros...

O professor de Português já percebeu: o aluno em questão "não gosta de ler".

- Mas o que mais me espanta é que quando era mais pequeno, lia imenso... devorava. Não é, querida? Podemos dizer que devorava.
- A querida opina: devorava.
- É preciso que se diga que nós proibimo-lo de ver televisão! (Aqui temos outra figura de retórica: a proibição absoluta de ver televisão. Trata-se de um famoso truque pedagógico, que consiste em resolver o problema suprimindo o seu enunciado!)
-É verdade, proibido de ver televisão durante todo o ano escolar. É um princípio que mantemos intransigentemente!

Televisão, não pode ver, mas tem piano das cinco às seis, viola das seis às sete, dança à terça, judo, ténis, esgrima ao sábado, esqui mal caem os primeiros flocos de neve, vela mal o sol desponta, olaria nos dias de chuva, viagem a Inglaterra, ginástica rítmica...

Ele não tem a mais pequena hipótese de se encontrar consigo próprio, mesmo que seja apenas durante um quarto de hora.

Morte aos sonhos!
Morte ao tédio!
O belo tédio...
O longo tédio...
O tédio que torna possível o acto de criar...

- Fazemos os possíveis por que ele nunca se aborreça. (Coitado dele...)
- Nós preocupamo-nos - como direi? -, preocupamo-nos em dar-lhe uma formação completa...
- Eu diria eficaz, querida, sobretudo eficaz.
- Se não fosse assim, não teríamos cá vindo.
- Felizmente que em matemática os resultados não são maus...

Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa

Pintura de Adelaide Claxton

segunda-feira, 5 de março de 2007

O verbo ler não suporta o imperativo


O verbo ler não suporta o imperativo

O verbo ler não suporta o imperativo. É uma aversão que compartilha com outros: o verbo "amar"... o verbo "sonhar"... É evidente que se pode sempre tentar. Vejamos: "Ama-me!" "Sonha!" "Lê!" "Lê, já te disse, ordeno-te que leias!"

- Vai para o teu quarto e lê!
Resultado?
Nada.

Ele adormeceu sobre o livro. De súbito, a janela pareceu-lhe aberta de par em par, por onde ele se iria evadir, voar, para fugir ao livro. Mas era um sonho acordado: o livro continuava aberto diante dele. Se abrirmos uma nesga da porta, lá está ele, sentado à sua mesa, sabiamente ocupado a ler. Mesmo que tenhamos subido a escada pé-ante-pé, a superfície do seu sono avisou-o da nossa chegada.

-Então, estás a gostar?
É claro que a resposta não vai ser negativa, seria um crime de lesa-majestade. O livro é algo sagrado, como é possível que haja alguém que não goste de ler? Não, ele dirá que as descrições são demasiado longas.

Tranquilizados, voltamos ao nosso posto diante da televisão. Pode até suceder que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós...

- Ele acha que as descrições são demasiado longas. Temos de o compreender, estamos no século do audiovisual, evidentemente, os autores do século XIX tinham de descrever tudo...
- Mas isso não é razão para o deixarmos saltar metade das páginas!

...

Não nos preocupemos, ele adormeceu.

Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa

Pintura de Jean Honoré de Fragonard, Rapariga a Ler, 1776

sábado, 3 de março de 2007

O prazer de ler


O prazer de ler

- Pára de ler, vais estragar os olhos!
- Vai lá para fora brincar, está um dia lindo.
- Apaga a luz! Já é tarde!

Nesse tempo, os dias estavam sempre demasiadamente bonitos para os desperdiçar com leituras, e as noites eram demasiadamente escuras.

Note-se que, quer se lesse quer não se lesse, o verbo já era conjugado no imperativo. Mesmo no passado, já era assim. De certo modo, ler era um acto subversivo. À descoberta do romance acrescia a excitação da desobediência à família. Era um duplo esplendor! Ah, a magnífica recordação de horas de leitura às escondidas, debaixo dos lençóis, à luz da lanterna. Como galopava a Anna Karenina ao encontro do seu Vronski, àquelas horas da noite! Amavam-se um ao outro, o que já era magnífico, mas amavam-se enfrentando a proibição de ler, o que era ainda melhor! Amavam-se contra a vontade do pai e da mãe, contra o trabalho de matemática por acabar, contra a redacção, contra o quarto por arrumar, amavam-se em vez de irem para a mesa, amavam-se antes da sobremesa, preferiam estar um com o outro a irem ao futebol ou a apanharem cogumelos... tinham-se escolhido um ao outro, nada mais queriam do que estar um com o outro... meu Deus, como o amor é belo!

E como se lê o romance num instante!


Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa


Pintura de António Bandeira

sexta-feira, 2 de março de 2007

Direitos imprescritíveis do leitor


Direitos imprescritíveis do leitor

1 - O direito de não ler.
2 - O direito de saltar páginas.
3 - O direito de não acabar um livro.
4 - O direito de reler.
5 - O direito de ler o que quer que seja.
6 - O direito ao bovarysme (doença textualmente transmissível).
7 - O direito de ler em qualquer parte.
8 - O direito de rebuscar.
9 - O direito de ler em voz alta.
10 - O direito de nos calarmos.

Daniel Pennac, Como um romance (texto da contracapa), Ed. Asa

Desenho de Almada Negreiros