segunda-feira, 5 de março de 2007

O verbo ler não suporta o imperativo


O verbo ler não suporta o imperativo

O verbo ler não suporta o imperativo. É uma aversão que compartilha com outros: o verbo "amar"... o verbo "sonhar"... É evidente que se pode sempre tentar. Vejamos: "Ama-me!" "Sonha!" "Lê!" "Lê, já te disse, ordeno-te que leias!"

- Vai para o teu quarto e lê!
Resultado?
Nada.

Ele adormeceu sobre o livro. De súbito, a janela pareceu-lhe aberta de par em par, por onde ele se iria evadir, voar, para fugir ao livro. Mas era um sonho acordado: o livro continuava aberto diante dele. Se abrirmos uma nesga da porta, lá está ele, sentado à sua mesa, sabiamente ocupado a ler. Mesmo que tenhamos subido a escada pé-ante-pé, a superfície do seu sono avisou-o da nossa chegada.

-Então, estás a gostar?
É claro que a resposta não vai ser negativa, seria um crime de lesa-majestade. O livro é algo sagrado, como é possível que haja alguém que não goste de ler? Não, ele dirá que as descrições são demasiado longas.

Tranquilizados, voltamos ao nosso posto diante da televisão. Pode até suceder que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós...

- Ele acha que as descrições são demasiado longas. Temos de o compreender, estamos no século do audiovisual, evidentemente, os autores do século XIX tinham de descrever tudo...
- Mas isso não é razão para o deixarmos saltar metade das páginas!

...

Não nos preocupemos, ele adormeceu.

Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa

Pintura de Jean Honoré de Fragonard, Rapariga a Ler, 1776

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