quarta-feira, 6 de junho de 2007

Vai aonde te leva o coração




Quando te sentires perdida, confusa, pensa nas árvores, lembra-te da forma como crescem. Lembra-te de que uma árvore com muita ramagem e poucas raízes é derrubada à primeira rajada de vento, e de que a linfa custa a correr numa árvore com muitas raízes e pouca ramagem. As raízes e os ramos devem crescer de igual modo, deves estar nas coisas e estar sobre as coisas, só assim poderás dar sombra e abrigo, só assim, na estação apropriada, poderás cobrir-te de flores e de frutos.

E quando à tua frente se abrirem muitas estradas e não souberes a que hás-de escolher, não metas por uma ao acaso, senta-te e espera. Respira com a mesma profundidade confiante com que respiraste no dia em que vieste ao mundo, e sem deixares que nada te distraia, espera e volta a esperar. Fica quieta, em silêncio, e ouve o teu coração. Quando ele te falar, levanta-te, e vai para onde ele te levar.



Susanna Tamaro, Vai Aonde Te Leva o Coração, Editorial Presença, 2003

domingo, 3 de junho de 2007

E de novo a armadilha dos abraços


E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.
Rosa Lobato Faria, "Dispersos", Poemas escolhidos e dispersos, Roma Editora, Lisboa, 1997

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Flores



É nestas flores, em particular, que
vejo desenhar-se uma linha que me leva
de mim a ti, passando sobre um campo
invisível, onde já não se ouvem
os pássaros, e onde o vento não faz cair
as folhas. Estamos em frente de um canteiro
puramente abstracto, e cada uma destas flores
nasceu das frases em que o amor se manifesta,
e do movimento dos dedos sobre a pele,
traçando um fio de horizonte
em que os meus olhos se perdem. Por isso estão
vivas, e alimentam-se da seiva
que bebem nos teus lábios, quando os abres,
e por instantes a vida inteira se resume
ao sorriso que neles se esboça.


Nuno Júdice

segunda-feira, 28 de maio de 2007

(In)quietudes



Detenho-me
no prazer de percorrer as galerias de meus ecos
onde os sons pensam e os pensamentos dançam
num fluxo em que até o silêncio seduz ardente
Decifro
Dedos macios que dedilham a cupidez das rosas
Uma música onde os oceanos se repartem
tocando os lábios na escuridão
Diluo-me
Em bocas que se pintam à luz do sol
e que serenamente mordem e beijam
a metade pronunciável da quietude
foto de XMaya in Olhares.com

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Raio de luz



Numa tarde morna de Maio,
O meu olhar baço e dormente
desenrolou-se sem sentido,
buscando uma imagem distante.
Um pássaro desprendeu-se do meu peito
gritou, voou sem nenhum destino,
e um novo olhar até aí,
plangente e perdido
dissolveu-se num raio de luz
e se afogou de encontro ao meu.


João-Maria Nabais, O Silêncio das Palavras


João-Maria Nabais é licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade Clássica de Lisboa.

Tem mais de uma centena de artigos e ensaios publicados nas áreas das Ciências da Saúde; História da Medicina; Escritores Médicos e Literatura.

Tem sido distinguido por mais de uma vez – Prémio Moldarte Pintura / 87; Prémios ANTÓNIO PATRÍCIO de Poesia / 96 e 02, com os livros Poemas e Sons de Urbanidade, ambos pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos; Medalha de Mérito Cultural da Associação de Escritores Médicos e Jornalistas de Bucareste – Roménia / 04.

sábado, 28 de abril de 2007

Noivado




Estendeu os braços carinhosamente e
avançou, de mãos abertas e cheias de
ternura.

- És tu Ernesto, meu amor?

Não era. Era o Bernardo.

Isso não os impediu de terem muitos
meninos e não serem felizes.

É o que faz a miopia.


Mário-Henrique Leiria, Contos do Gin-Tonic, Ed. Estampa
Pintura de Henri Rousseau, Um casamento campestre, 1905

terça-feira, 24 de abril de 2007

25 de Abril


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 21 de abril de 2007

Definição do amor


"Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer" (Camões)

Que o poeta de todos os poetas
me conceda boa estrela
que a estrela de todos os astros
me premeie na lapela
prémios de honor
prefiro os muitos
oferecidos pelas mãos do amor
coroando o amor
e os seus heterónimos
nem vão caber nos Jerónimos

Amores anónimos não há
e assim foi pela madrugada
mesmo que seja um "assim fosse"
vou nomear-te namorada
ninguém já soube o que é o amor
se o amor é aquilo que ninguém viu
uma cor que fugiu
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

Se devagar se vai ao longe
devagar te quero perto
mesmo que o que arde nunca cure
vou beijar-te a sol aberto
é já dos livros que o instante
se parece tanto com a eternidade
e que o amor na verdade
só se cansa de ti
se de ti mesmo te cansas

Mordidas mansas, emoções
suspiros, densos, afagares
liberto das definições
o amor define os seus lugares
ilhas desertas até ver
ver o sol, a chuva
o arco do corpo
arco-íris, corpo a corpo
cara a cara, cor a cor
incandescendo o olhar
(Pousa agora, borboleta na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

E ao pôr o dedo nas feridas
que supunhámos curadas
provas de fogo atravessamos
no mar alto festejadas
não se controla o inesperado
nem se diz o indizível do amor
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

Composição: Sérgio Godinho

terça-feira, 3 de abril de 2007

Perguntas à Língua Portuguesa


Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas dela? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

O mato desconhecido é o anonimato?

O pequeno viaduto é um abreviaduto?

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

[...]
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambésia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela faziaé, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso puguês - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.


Mia Couto

Pintura de Bertina Lopes, Mafalala

sexta-feira, 30 de março de 2007

Brincar no Português


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de reproduzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Mia Couto
Pintura de Ilídio Candja

quarta-feira, 28 de março de 2007

Nocturnos



Vens de noite no sonho
sem pés
entre páginas
de gasta paciência
quando a música findou
e teu sorriso se desfez
como um grão de pólen.

Vens no veneno oculto
de meus dias
no silêncio
dos meus ossos
devagar
arrastando em queda
o nosso mundo.

Vens no espectro
da angústia
na escrita
inquieta
destes versos
no luto maternal
que me devolve a ti.

A escuridão desce então
sobre o meu corpo
quando o rosto da morte
adormece na almofada.


Ana Marques Gastão, Nocturnos, Lisboa, Gótica, 2002
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ANA MARQUES GASTÃO
Nasceu em Lisboa, em 1962. Advogada, formou-se na Universidade Católica e é actualmente redactora cultural e crítica literária do jornal Diário de Notícias. Como poeta, tem também representado o país em certames internacionais.

Alguns livros:

Tempo de Morrer,Tempo para Viver (1998)
Terra sem Mãe (2000)
A Definição da Noite (2003)
Nós / Nudos (2004)
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Pintura de Cézanne

segunda-feira, 19 de março de 2007

Carta


24 - 9 - 1929

Ex.ma Senhora D. Ofélia Queirós:

Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª - considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer cousa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obedência e da disciplina) - que V. Ex.ª está proibida de:

(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.

Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que caso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.

Cumprimenta V. Ex.ª

Álvaro de Campos, Eng. naval

Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas

Pintura de Henri Matisse, Femme assise à sa coiffeuse

quarta-feira, 14 de março de 2007

Carta de amor


9 - 10 - 1929
Terrível bebé:

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também por que é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e por que é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim.

Fernando

Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas

Pintura de Gustave Klimt, O beijo

terça-feira, 6 de março de 2007

O meu filho não gosta de ler


O meu filho não gosta de ler

Entretanto, no liceu (como dizem em itálico as histórias de banda desenhada belgas da sua geração), os pais:

- Sabe, o meu filho... a minha filha... os livros...

O professor de Português já percebeu: o aluno em questão "não gosta de ler".

- Mas o que mais me espanta é que quando era mais pequeno, lia imenso... devorava. Não é, querida? Podemos dizer que devorava.
- A querida opina: devorava.
- É preciso que se diga que nós proibimo-lo de ver televisão! (Aqui temos outra figura de retórica: a proibição absoluta de ver televisão. Trata-se de um famoso truque pedagógico, que consiste em resolver o problema suprimindo o seu enunciado!)
-É verdade, proibido de ver televisão durante todo o ano escolar. É um princípio que mantemos intransigentemente!

Televisão, não pode ver, mas tem piano das cinco às seis, viola das seis às sete, dança à terça, judo, ténis, esgrima ao sábado, esqui mal caem os primeiros flocos de neve, vela mal o sol desponta, olaria nos dias de chuva, viagem a Inglaterra, ginástica rítmica...

Ele não tem a mais pequena hipótese de se encontrar consigo próprio, mesmo que seja apenas durante um quarto de hora.

Morte aos sonhos!
Morte ao tédio!
O belo tédio...
O longo tédio...
O tédio que torna possível o acto de criar...

- Fazemos os possíveis por que ele nunca se aborreça. (Coitado dele...)
- Nós preocupamo-nos - como direi? -, preocupamo-nos em dar-lhe uma formação completa...
- Eu diria eficaz, querida, sobretudo eficaz.
- Se não fosse assim, não teríamos cá vindo.
- Felizmente que em matemática os resultados não são maus...

Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa

Pintura de Adelaide Claxton

segunda-feira, 5 de março de 2007

O verbo ler não suporta o imperativo


O verbo ler não suporta o imperativo

O verbo ler não suporta o imperativo. É uma aversão que compartilha com outros: o verbo "amar"... o verbo "sonhar"... É evidente que se pode sempre tentar. Vejamos: "Ama-me!" "Sonha!" "Lê!" "Lê, já te disse, ordeno-te que leias!"

- Vai para o teu quarto e lê!
Resultado?
Nada.

Ele adormeceu sobre o livro. De súbito, a janela pareceu-lhe aberta de par em par, por onde ele se iria evadir, voar, para fugir ao livro. Mas era um sonho acordado: o livro continuava aberto diante dele. Se abrirmos uma nesga da porta, lá está ele, sentado à sua mesa, sabiamente ocupado a ler. Mesmo que tenhamos subido a escada pé-ante-pé, a superfície do seu sono avisou-o da nossa chegada.

-Então, estás a gostar?
É claro que a resposta não vai ser negativa, seria um crime de lesa-majestade. O livro é algo sagrado, como é possível que haja alguém que não goste de ler? Não, ele dirá que as descrições são demasiado longas.

Tranquilizados, voltamos ao nosso posto diante da televisão. Pode até suceder que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós...

- Ele acha que as descrições são demasiado longas. Temos de o compreender, estamos no século do audiovisual, evidentemente, os autores do século XIX tinham de descrever tudo...
- Mas isso não é razão para o deixarmos saltar metade das páginas!

...

Não nos preocupemos, ele adormeceu.

Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa

Pintura de Jean Honoré de Fragonard, Rapariga a Ler, 1776

sábado, 3 de março de 2007

O prazer de ler


O prazer de ler

- Pára de ler, vais estragar os olhos!
- Vai lá para fora brincar, está um dia lindo.
- Apaga a luz! Já é tarde!

Nesse tempo, os dias estavam sempre demasiadamente bonitos para os desperdiçar com leituras, e as noites eram demasiadamente escuras.

Note-se que, quer se lesse quer não se lesse, o verbo já era conjugado no imperativo. Mesmo no passado, já era assim. De certo modo, ler era um acto subversivo. À descoberta do romance acrescia a excitação da desobediência à família. Era um duplo esplendor! Ah, a magnífica recordação de horas de leitura às escondidas, debaixo dos lençóis, à luz da lanterna. Como galopava a Anna Karenina ao encontro do seu Vronski, àquelas horas da noite! Amavam-se um ao outro, o que já era magnífico, mas amavam-se enfrentando a proibição de ler, o que era ainda melhor! Amavam-se contra a vontade do pai e da mãe, contra o trabalho de matemática por acabar, contra a redacção, contra o quarto por arrumar, amavam-se em vez de irem para a mesa, amavam-se antes da sobremesa, preferiam estar um com o outro a irem ao futebol ou a apanharem cogumelos... tinham-se escolhido um ao outro, nada mais queriam do que estar um com o outro... meu Deus, como o amor é belo!

E como se lê o romance num instante!


Daniel Pennac, Como um romance, Ed. Asa


Pintura de António Bandeira

sexta-feira, 2 de março de 2007

Direitos imprescritíveis do leitor


Direitos imprescritíveis do leitor

1 - O direito de não ler.
2 - O direito de saltar páginas.
3 - O direito de não acabar um livro.
4 - O direito de reler.
5 - O direito de ler o que quer que seja.
6 - O direito ao bovarysme (doença textualmente transmissível).
7 - O direito de ler em qualquer parte.
8 - O direito de rebuscar.
9 - O direito de ler em voz alta.
10 - O direito de nos calarmos.

Daniel Pennac, Como um romance (texto da contracapa), Ed. Asa

Desenho de Almada Negreiros